terça-feira, 28 de julho de 2015

Ninguém entendeu porque sai do Marau.

 Nem eu.

                Gosto de dormir. Até tarde, de preferência. São poucos os motivos que me fazem acordar cedo e ir para a rua com um sorriso no rosto. Naquele dia, o Marau faria seu último treino antes da estreia. A ansiedade era grande, pois mais de um mês de preparo tinha se passado e o acompanhamento era intenso para que tudo desse certo. Acordei cedinho. Vesti a primeira roupa que vi, um par de sapatilhas confortáveis e um sorriso no rosto. Peguei a câmera, entrei no carro e fui para o estádio.  
                O sol batia quente no rosto, mas não queimava. Não ainda. Dei algumas voltas pelo campo. Sozinha, atrás do gol, fiz meus pedidos para os Deuses do futebol iluminarem o caminho do Marau. Segurei firme a câmera e desejei com força poder clicar a nossa equipe erguendo a taça, como fazia antes do início de cada competição. E voltei para as fotos.

-E aí, tudo certo para amanhã?

                Nada certo. Desculpa, nada feito. Te vira, vamos de ônibus. Mulher não pode. Mulher nossa diretoria não permite. (E eu já tinha ouvido essa história outras vezes). Dei um sorriso amarelo e com toda minha força quis acreditar que eles estavam brincando. Não era possível eles terem esquecido que desde a minha “contratação”, eu faria a cobertura dos jogos.
                Mas eles não estavam brincando. E o único motivo era esse: ser mulher. Não faltava diploma de jornalismo, não faltava competência, disponibilidade, nem sequer uma câmera – que comprei apenas para registrar os jogos. Falta apenas... Bom, vocês sabem o que.
                Eu me senti apunhalada, humilhada, agredida. Um tapa na cara não doeria tanto. E como quem leva um tapa, tonteei e não sabia para onde correr. Não consegui erguer a voz para xingar até a ultima geração de quem quer que fosse, nem para chorar a humilhação que eu senti.
                Minhas pernas não deixaram eu sair de lá correndo. Fui devagar até a casamata vazia. Sentei. Eu sabia que ia ser a última vez que eu sentaria lá. Cruzei as pernas e olhei a sapatilha surrada, companheira de jogos por causa do seu conforto. Delicada, cor de rosa, um laço em cima. Do lado de onde estava, uma chuteira perdida. Eram sapatos diferentes, como diferenças de quem os usava. Mas os dois calçados estavam no mesmo lugar, pelo mesmo motivo.
                Fiquei pensando. E nessas horas até as lágrimas me abandonaram.  “Ei, psiu! Tira uma foto, Ale!”. Os meninos, no descontraído bobinho, faziam pose para a câmera. Eu sabia que no fim do treino viria uma mensagem no Whatsapp com um “passa aí as fotos de hoje”. E eu sabia também que aquele seria o último registro fotográfico que eu faria do Marau.
                Saí do campo sem olhar para trás. Subi na arquibancada e, àquela hora, o sol já queimava demais. Me sentei sozinha pela imensidão dos degraus vazios. Quantas vezes eu teria sentado no mesmo lugar? Quantas vezes eu teria dado risada ou chorado de emoção bem ali?

Que coisa de mulherzinha ficar chorando!

E eu chorei. Saí de lá sem que ninguém percebesse isso, peguei o carro e – ao contrário de acelerar até o fim para que a mágoa passasse, fui devagarinho até em casa. Tempo suficiente para enxugar todas as lagrimas na manga da camisa – também cor de rosa. Respirei fundo e dobrei a esquina de casa. Saí da garagem gritando: “É a última vez, Marau!”. E minha mãe tentava entender um porquê que eu não saberia traduzir naquele momento.
Realmente foi a última vez. Cortei ligações, parei de ir para o estádio e me separei de tudo que poderia me deixar perto de saber do Marau. Se os olhos não vissem, quem sabe, o coração deixaria de sentir.

Mas o coração não deixa de sentir.

                Uma, duas, três, quatro, cinco, seis. Faltam quatro xícaras. Não é possível, onde eu enfiei? Como eu fui perder xícaras dentro de um salão de festas? E aí eu percebi o quanto algumas xícaras podem te ensinar.
                Em uma tarde de chuva, um carro buzina e uma cabeça sai de fora falando: “Poxa Ale, a gente não tem xícara para tomar café da manhã todos os dias. Não tem pra emprestar não?”. Eu realmente não ocupava aquelas xícaras. Saí na chuva e entreguei a eles: “Ei, cuida bem, né?”. E simplesmente esqueci. Mas parece que a memória tenta judiar toda vez.
                Do lado das xícaras restantes, um pote de açúcar. O mesmo açúcar que um dia levei para a concentração, pois o clube já não teria e café amargo é ruim demais. Tudo, no mesmo salão de festas. Lugar que acolhia os jogadores novatos com a mesma desculpa para minha mãe cozinhar. “Poxa vida, eles vieram de longe, não conhecem ninguém e só tem a gente de amigos!”. Com licença Cláudia, vou sentar lá com você.

Nem sequer tive coragem de odia-los.

                Eu conheci a história de cada um deles. E na história deles conheci o mais intimo do futebol: o sonho moleque de ser jogador. É impossível amaldiçoar um sonho de vida.  
                Outro dia, abri a gaveta e vi a camisa do Marau. Não tive coragem de jogar fora, muito menos de usa-la novamente. Foi a primeira e única vez que eu, gremista fanática, vesti vermelho. Lembro-me de quando comprei a camisa. Fim de projeto experimental, seis meses de trabalho voluntário no Marau e juntei uns trocos para guardar aquele momento em uma camisa do clube. Clube em que eu tinha me proposto ajudar desde que soube de sua fundação. Então, eu lembrei das meninas que me mostravam as camisas ganhas após ficadas com jogadores. Para isso não fui mulher. E eu senti falta daqueles R$60 gastos para no final não ser possível ser mulher e querer ajudar.

No último mês o Marau foi campeão.

                Não tive coragem de ir ao estádio. Não tive coragem de ligar o rádio. Não tive coragem de torcer para o Bagé. Eu me senti em um universo paralelo. Pois, perdida no tempo houve uma Ale que estaria na beira do campo chorando e, logo depois, correndo de novo na frente do carro do corpo de bombeiros. Uma Ale que é como uma ferida, ainda aberta no sangue vermelho vivo, que um dia vai ter que virar cicatriz.

Eu não vou mais vesti vermelho.

                Amanhã, o Marau joga contra o Grêmio. Quem me conhece, e nem precisa muito, sabe como eu sou gremista. Quando fundaram o Marau, lembro-me de ter brincado com Sandro Sotilli: “E quando o Marau jogar com meu Grêmio, vou fazer como?”.  Eu sabia que desde aquele momento o time da cidade seria uma paixão – tão forte e avassaladora que termina na decepção de um namoro adolescente.
                Amanhã, eu não vou mais vestir vermelho. Vou no meu tradicional azul, preto e branco. Sem dúvidas, quem diria? 

                Depois de tudo, eu ainda não deixarei de acreditar no amor de um torcedor para um time. Mas na igualdade no futebol, bom, eu já não consigo acreditar mais.