Nem eu.
Gosto
de dormir. Até tarde, de preferência. São poucos os motivos que me fazem
acordar cedo e ir para a rua com um sorriso no rosto. Naquele dia, o Marau
faria seu último treino antes da estreia. A ansiedade era grande, pois mais de
um mês de preparo tinha se passado e o acompanhamento era intenso para que tudo
desse certo. Acordei cedinho. Vesti a primeira roupa que vi, um par de sapatilhas
confortáveis e um sorriso no rosto. Peguei a câmera, entrei no carro e fui para
o estádio.
O
sol batia quente no rosto, mas não queimava. Não ainda. Dei algumas voltas pelo
campo. Sozinha, atrás do gol, fiz meus pedidos para os Deuses do futebol
iluminarem o caminho do Marau. Segurei firme a câmera e desejei com força poder
clicar a nossa equipe erguendo a taça, como fazia antes do início de cada
competição. E voltei para as fotos.
-E aí, tudo
certo para amanhã?
Nada
certo. Desculpa, nada feito. Te vira, vamos de ônibus. Mulher não pode. Mulher
nossa diretoria não permite. (E eu já tinha ouvido essa história outras vezes).
Dei um sorriso amarelo e com toda minha força quis acreditar que eles estavam
brincando. Não era possível eles terem esquecido que desde a minha “contratação”,
eu faria a cobertura dos jogos.
Mas
eles não estavam brincando. E o único motivo era esse: ser mulher. Não faltava
diploma de jornalismo, não faltava competência, disponibilidade, nem sequer uma
câmera – que comprei apenas para registrar os jogos. Falta apenas... Bom, vocês
sabem o que.
Eu
me senti apunhalada, humilhada, agredida. Um tapa na cara não doeria tanto. E
como quem leva um tapa, tonteei e não sabia para onde correr. Não consegui
erguer a voz para xingar até a ultima geração de quem quer que fosse, nem para
chorar a humilhação que eu senti.
Minhas
pernas não deixaram eu sair de lá correndo. Fui devagar até a casamata vazia.
Sentei. Eu sabia que ia ser a última vez que eu sentaria lá. Cruzei as pernas e
olhei a sapatilha surrada, companheira de jogos por causa do seu conforto.
Delicada, cor de rosa, um laço em cima. Do lado de onde estava, uma chuteira
perdida. Eram sapatos diferentes, como diferenças de quem os usava. Mas os dois
calçados estavam no mesmo lugar, pelo mesmo motivo.
Fiquei
pensando. E nessas horas até as lágrimas me abandonaram. “Ei, psiu! Tira uma foto, Ale!”. Os meninos,
no descontraído bobinho, faziam pose para a câmera. Eu sabia que no fim do
treino viria uma mensagem no Whatsapp com um “passa aí as fotos de hoje”. E eu
sabia também que aquele seria o último registro fotográfico que eu faria do
Marau.
Saí
do campo sem olhar para trás. Subi na arquibancada e, àquela hora, o sol já
queimava demais. Me sentei sozinha pela imensidão dos degraus vazios. Quantas
vezes eu teria sentado no mesmo lugar? Quantas vezes eu teria dado risada ou
chorado de emoção bem ali?
Que coisa de
mulherzinha ficar chorando!
E eu chorei. Saí de lá sem que ninguém percebesse
isso, peguei o carro e – ao contrário de acelerar até o fim para que a mágoa
passasse, fui devagarinho até em casa. Tempo suficiente para enxugar todas as
lagrimas na manga da camisa – também cor de rosa. Respirei fundo e dobrei a
esquina de casa. Saí da garagem gritando: “É a última vez, Marau!”. E minha mãe
tentava entender um porquê que eu não saberia traduzir naquele momento.
Realmente foi a última vez. Cortei ligações, parei
de ir para o estádio e me separei de tudo que poderia me deixar perto de saber
do Marau. Se os olhos não vissem, quem sabe, o coração deixaria de sentir.
Mas o
coração não deixa de sentir.
Uma,
duas, três, quatro, cinco, seis. Faltam quatro xícaras. Não é possível, onde eu
enfiei? Como eu fui perder xícaras dentro de um salão de festas? E aí eu
percebi o quanto algumas xícaras podem te ensinar.
Em
uma tarde de chuva, um carro buzina e uma cabeça sai de fora falando: “Poxa
Ale, a gente não tem xícara para tomar café da manhã todos os dias. Não tem pra
emprestar não?”. Eu realmente não ocupava aquelas xícaras. Saí na chuva e
entreguei a eles: “Ei, cuida bem, né?”. E simplesmente esqueci. Mas parece que
a memória tenta judiar toda vez.
Do
lado das xícaras restantes, um pote de açúcar. O mesmo açúcar que um dia levei para
a concentração, pois o clube já não teria e café amargo é ruim demais. Tudo, no
mesmo salão de festas. Lugar que acolhia os jogadores novatos com a mesma
desculpa para minha mãe cozinhar. “Poxa vida, eles vieram de longe, não
conhecem ninguém e só tem a gente de amigos!”. Com licença Cláudia, vou sentar
lá com você.
Nem sequer
tive coragem de odia-los.
Eu
conheci a história de cada um deles. E na história deles conheci o mais intimo
do futebol: o sonho moleque de ser jogador. É impossível amaldiçoar um sonho de
vida.
Outro
dia, abri a gaveta e vi a camisa do Marau. Não tive coragem de jogar fora, muito
menos de usa-la novamente. Foi a primeira e única vez que eu, gremista
fanática, vesti vermelho. Lembro-me de quando comprei a camisa. Fim de projeto
experimental, seis meses de trabalho voluntário no Marau e juntei uns trocos
para guardar aquele momento em uma camisa do clube. Clube em que eu tinha me
proposto ajudar desde que soube de sua fundação. Então, eu lembrei das meninas
que me mostravam as camisas ganhas após ficadas com jogadores. Para isso não
fui mulher. E eu senti falta daqueles R$60 gastos para no final não ser
possível ser mulher e querer ajudar.
No último mês
o Marau foi campeão.
Não
tive coragem de ir ao estádio. Não tive coragem de ligar o rádio. Não tive
coragem de torcer para o Bagé. Eu me senti em um universo paralelo. Pois,
perdida no tempo houve uma Ale que estaria na beira do campo chorando e, logo
depois, correndo de novo na frente do carro do corpo de bombeiros. Uma Ale que
é como uma ferida, ainda aberta no sangue vermelho vivo, que um dia vai ter que
virar cicatriz.
Eu não vou
mais vesti vermelho.
Amanhã,
o Marau joga contra o Grêmio. Quem me conhece, e nem precisa muito, sabe como
eu sou gremista. Quando fundaram o Marau, lembro-me de ter brincado com Sandro
Sotilli: “E quando o Marau jogar com meu Grêmio, vou fazer como?”. Eu sabia que desde aquele momento o time da
cidade seria uma paixão – tão forte e avassaladora que termina na decepção de
um namoro adolescente.
Amanhã,
eu não vou mais vestir vermelho. Vou no meu tradicional azul, preto e branco.
Sem dúvidas, quem diria?
Depois
de tudo, eu ainda não deixarei de acreditar no amor de um torcedor para um time.
Mas na igualdade no futebol, bom, eu já não consigo acreditar mais.